Parecer Técnico-Jurídico da ANAJURE sobre o Documento CRC/C/GBR/CO/5 do Comitê sobre Direitos da Criança da ONU

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I – SÍNTESE DOS FATOS MOTIVADORES:

O Comitê sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas publicou em 03 de junho de 2016 o documento CRC/C/GBR/CO/5, intitulado “Observações Conclusivas sobre quinto relatório periódico do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte” (tradução livre).

O documento é o resultado do trabalho deste órgão, que avalia as medidas adotadas pelos Estados signatários da Convenção sobre os Direitos da Criança – no caso, circunscrito às ilhas britânicas – quanto à garantia dos direitos dos infantes e sugerindo as soluções que lhe pareçam mais convenientes, em caso de possível violação. Ao todo, a análise compreende doze áreas temáticas, sendo uma delas, “Direitos Civis e Liberdades”, composta pelo subtema “Liberdade de Pensamento, Consciência e Religião”.

Embora o Relatório tenha sido disponibilizado apenas em inglês, traduzimos abaixo os dois únicos itens do tópico “Liberdade de Pensamento, Consciência e Religião”, que tem repercutido na imprensa brasileira e provocado discussões acerca do posicionamento da ONU sobre os direitos das crianças, e dos pais, no tocante à participação das crianças em cerimônias religiosas em escolas públicas.

  1. O Comitê está preocupado que os alunos são obrigados por lei a participar de uma cerimônia religiosa diária, que é “total ou principalmente de um caráter amplamente cristão” nas escolas com financiamento público na Inglaterra e no País de Gales, e que as crianças não têm o direito de retirar-se de tal adoração sem autorização dos pais antes de entrar no último ciclo do ensino secundário. Na Irlanda do Norte e Escócia, as crianças não têm direito de se retirar da adoração coletiva sem a permissão dos pais.
  2. O Comitê recomenda que o Estado Parte revogue as disposições legais para a frequência obrigatória nos cultos coletivos nas escolas com financiamento público e garanta que as crianças possam exercer autonomamente o direito de retirar-se do culto religioso na escola. (tradução livre)

Entretanto, a fim de evitar más interpretações do contexto sócio-político e religioso no qual este texto foi produzido, insta ponderar os esclarecimentos jurídicos que seguem alhures.

 
II – ESCLARECIMENTOS PRELIMINARES

Cabe esclarecer, preliminarmente, que o documento do Comitê da ONU sobre os Direitos da Criança se refere a uma situação específica no tocante à religiosidade das crianças do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, qual seja, a determinação legal da participação obrigatória dos menores em cerimônias religiosas coletivas nas escolas. Em segundo lugar, não se refere a qualquer situação ordinária em que os filhos são levados pelos pais às igrejas e cerimônias religiosas cotidianas, conforme recomenda a sua crença, como deixaram a entender algumas reportagens veiculadas na imprensa brasileira[1]. Nesse sentido, vale dizer: as observações conclusivas do relatório se destinam à situação da participação das crianças em cerimônias religiosas escolares financiadas com dinheiro público.

Além disso, a preocupação expressada pelo Comitê não é por conta de as cerimônias serem cristãs, como se o Comitê estivesse se posicionando dessa maneira apenas porque as cerimônias são cristãs. Trata-se, ao nosso ver, de apenas uma observação fática, ou seja, apenas mostra que a maioria dessas celebrações possuem um caráter e características cristãs, como acontece no Brasil, em que a maioria da população é cristã, e, assim sendo, a maioria das celebrações religiosas também o são, não se constituindo ofensa ao direito de liberdade religiosa. Por outro lado, não se pode negar – por ser de amplo conhecimento internacional –, a tentativa, por alguns grupos de intelectuais que militam em organismos do sistema das nações unidas, de desconstrução dos valores religiosos judaico-cristãs.

Por fim, é necessário entender o papel do Comitê dos Direitos da Criança dentro do sistema das Nações Unidas, para termos uma compreensão acertada do alcance e implicação do documento em comento. O Comitê foi criado em virtude do art. 43.º da Convenção sobe os Direitos da Criança, com o objetivo de controlar a aplicação, pelos Estados Partes, das disposições desta Convenção, bem como dos seus dois Protocolos Facultativos. Os Estados Partes apresentam relatórios ao Comitê, no qual enunciam as medidas adotadas para tornar efetivas as disposições da Convenção. Os relatórios são analisados pelo Comitê e discutidos entre este e representantes do Estado Parte em causa, após o que o Comitê emite as suas observações finais sobre cada relatório, salientando os aspectos positivos bem como os problemas detectados, para os quais recomenda as soluções que lhe pareçam adequadas.

Assim, as observações do Comitê não representam o entendimento da Assembleia Geral da ONU, órgão deliberativo máximo da instituição, e não dispõem de força vinculante sobre os países que compõem as Nações Unidas; Dessa forma, os Estados não estão obrigados a tomar as medidas sugeridas pelo Comitê, pois se trata de um órgão cujos documentos e pronunciamentos produzidos são meramente opinativos.

Seja como for, quanto ao mérito das observações do relatório CRC/C/GBR/CO/5, com base nos argumentos jurídicos que seguem, demonstraremos que as ilações do Comitê, nesse caso específico, contrariam a legislação internacional concernente aos Direitos Humanos dos pais e das crianças.

 
III – DA LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL SOBRE O TEMA

Os principais tratados, pactos e declarações de direitos humanos internacionais estabelecem que é tarefa da família a formação moral e religiosa das crianças e adolescentes. Trata-se, portanto, de um direito humano fundamental assentado no princípio supraconstitucional da dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948 na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), cujo conteúdo defende a dignidade das pessoas e reconhece que os direitos humanos e as liberdades fundamentais devem ser aplicados a cada cidadão do planeta, reconhece que os pais têm a liberdade e primazia de educar e direcionar a educação dos filhos:

Artigo 26.

  1. Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos

Os pais têm prioridade do direito de escolher o tipo de educação que deseja conferir aos filhos, e, assim, ao matricularem os filhos em determinada escola que possui em suas atividades curriculares a formação religiosa, ou atividades extracurriculares que incluem a participação em cerimônias religiosas, os pais são os únicos que podem solicitar ou autorizar a não participação dos seus filhos nas cerimônias que contrariam a crença exercida pelos pais.

No mesmo sentido da DUDH, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais prescreve em seu artigo 13 que o direito dos pais de direcionar a educação moral dos filhos de acordo com as suas próprias convicções se enquadra no direito humano fundamental à liberdade, demandando respeito e proteção.

Artigo 13

  1. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e, quando for o caso, dos tutores legais de escolher para seus filhos escolas distintas daquelas criadas pelas autoridades públicas, sempre que atendam aos padrões mínimos de ensino prescritos ou aprovados pelo Estado, e de fazer com que seus filhos venham a receber educação religiosa ou moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.

De igual maneira, a Convenção Americana de Direitos Humanos – conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica de 1969 – no seu art. 12, item 4, estabelece, in claris, que:

Artigo 12

  1. Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.

A mesma proteção pode ser visualizada na Convenção sobre os Direitos da Criança, com uma importante observação, qual seja: a de que esse Tratado demonstra claramente que a preocupação em conceder aos pais a primazia da educação moral e religiosa da criança não se baseia em autoritarismo dos pais ou em negar à criança condições adequadas ao seu desenvolvimento, mas se baseia no superior interesse da criança, por entender que os pais, ao educarem os filhos sobre questões morais e religiosas, o fazem melhor que qualquer outra instituição ou estrutura.

Diz, assim, o art. 18 da Convenção sobre os Direitos da Criança:
Artigo 18

  1. Os Estados Partes envidarão os seus melhores esforços a fim de assegurar o reconhecimento do princípio de que ambos os pais têm obrigações comuns com relação à educação e ao desenvolvimento da criança. Caberá aos pais ou, quando for o caso, aos representantes legais, a responsabilidade primordial pela educação e pelo desenvolvimento da criança. Sua preocupação fundamental visará ao interesse maior da criança.

Ainda do ponto de vista da legislação internacional, dispõe o Protocolo adicional à Convenção de Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Paris, 20.3.1952):
Artigo 2.º
A ninguém pode ser negado o direito à instrução. O Estado, no exercício das funções que tem de assumir no campo da educação e do ensino, respeitará o direito dos pais a assegurar aquela educação e ensino consoante as suas convicções religiosas e filosóficas.
Por fim, em relação à proteção do Direito Internacional conferida ao direito dos pais de educar os seus filhos, a Carta Dos Direitos Fundamentais Da União Europeia:
Artigo 14º

  1. São respeitados, segundo as legislações nacionais que regem o respectivo exercício, a liberdade de criação de estabelecimentos de ensino, no respeito pelos princípios democráticos, e o direito dos pais de assegurarem a educação e o ensino dos filhos de acordo com as suas convicções religiosas, filosóficas e pedagógicas.

Assim, a legislação internacional que fundamenta o Direito Internacional dos Direitos Humanos é uníssona ao afirmar que aos pais é conferido o direito de direcionar a educação moral e religiosa dos filhos, tendo em vista, inclusive, o superior interesse da criança, de forma que os pais, e somente estes – excluindo-se, portanto, o Estado ou a própria criança – podem autorizar ou solicitar a não participação de seus filhos em cerimônias religiosas coletivas nas escolas que frequentam.

O documento CRC/C/GBR/CO/5 do Comitê da ONU sobre os Direitos da Criança, ao expressar preocupação com o fato de as crianças não terem o direito de retirar-se da adoração coletiva sem autorização dos pais antes de entrar no último ciclo do ensino secundário – o que no Brasil consideramos “ensino médio”, e recomendar que o Estado Parte revogue as disposições legais para a frequência obrigatória nos cultos coletivos nas escolas com financiamento público e garanta que as crianças possam exercer autonomamente o direito de retirar-se do culto religioso na escola, fere os tratados internacionais mais importantes do ordenamento jurídico internacional, no que diz respeito ao direito que os pais e, quando for o caso, os tutores, têm a que seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa que esteja de acordo com suas próprias convicções.

 
IV – CONCLUSÃO
Pelos argumentos jurídicos supramencionados, pode-se concluir que

  • O documento CRC/C/GBR/CO/5 do Comitê sobre os Direitos da Criança da ONU se circunscreve aos países da Comunidade Britânica e da Irlanda do Norte.
  • O documento CRC/C/GBR/CO/5 do Comitê sobre os Direitos da Criança da ONU tem caráter meramente opinativo e consultivo, vale dizer, não é vinculante nem mesmo para os países da Comunidade Britânica e da Irlanda do Norte.
  • Quanto ao meritum causae, o documento CRC/C/GBR/CO/5 do Comitê sobre os Direitos da Criança da ONU não se presta a impedir que os pais levem os seus filhos a qualquer cerimônia religiosa cotidiana.
  • Ainda quanto ao meritum causae, o documento CRC/C/GBR/CO/5 do Comitê sobre os Direitos da Criança da ONU não impede a consecução, pelas escolas públicas, de cerimônias religiosas diárias mesmo que Cristãs no interior dos estabelecimentos de ensino. Ressalte-se, inclusive, que o documento não se reporta a situações que envolvem escolas privadas confessionais.
  • Seja como for, ainda quanto ao meritum causae, como demonstramos exaustivamente no presente Parecer Técnico, as recomendações emitidas pelo Comitê sobre os Direitos da Criança da ONU em relação à Liberdade de Pensamento, Consciência e Religião, presentes nos itens 34 e 35 do documento CRC/C/GBR/CO/5, estão em conflito com os princípios e preceitos constantes dos mais importantes tratados, pactos e declarações internacionais de direitos humanos, inclusive do próprio sistema ONU, sobre o direito que os pais e responsáveis têm sobre a educação moral e religiosa das crianças e adolescentes.

 
Brasília- DF – Brasil, 04 de julho de 2016.
 
Assinaturas
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[1]
ONU diz que levar crianças a cultos viola Direitos Humanos e quer impor limites aos pais –
https://noticias.gospelmais.com.br/onu-levar-criancas-cultos-viola-direitos-humanos-83841.html
Permitir que crianças frequentem cultos viola os direitos humanos, diz ONU – https://www.radioc.com.br/2016/07/01/permitir-que-criancas-frequentem-cultos-viola-os-direitos-humanos-diz-onu/
Permitir que crianças frequentem cultos viola os direitos humanos, diz ONU – http://guiame.com.br/gospel/noticias/permitir-que-criancas-frequentem-cultos-viola-os-direitos-humanos-diz-onu.html
ONU afirma que levar crianças à igreja é “violação dos direitos humanos”. – http://www.apocalipsenews.com/religiao/onu-diz-que-levar-criancas-a-cultos-viola-direitos-humanos-enquanto-que-o-papa-francisco-pede-que-indios-nao-sejam-evangelizados/

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