Um ano da sentença contra Costa Rica: o Pacto San José in vitro

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Neste mês de dezembro completa-se um ano da publicação da sentença ditada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Artavia-Murillo (Fertilização in vitro) vs. Costa Rica (2012). O desconcerto ocasionado há um ano permanece vigente, assim como as serias preocupações sobre o futuro do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Breve recordação do assunto

No assunto submetido, a jurisdição da Corte buscou determinar se Costa Rica havia violado ou não suas obrigações internacionais derivadas do Pacto San José ao declarar inconstitucional, em 2000, um decreto executivo que regulava a técnica de reprodução assistida, conhecida como Fertilização in vitro (FIV) alegando, entre outras razões, que o embrião não pode ser tratado como objeto e que o estado atual da FIV causa a morte a um número desproporcional de embriões humanos.

Como resposta a esta decisão, nove casais alegram que esta violava seus direitos humanos. Finalmente, a Corte resolveu que a proibição da FIV deixou vulnerável a integridade pessoal, a liberdade, a vida privada e o direito da família dos peticionários. Em sua condenação a Costa Rica ordenou, dentro de uma larga série de petições, a modificação de sua legislação – aliás, o prazo outorgado pela Corte a Costa Rica para apresentar um avanço está a poucos dias de vencer; incluirá, idealmente, a aprovação de um regulamento que permita de novo o exercício da técnica de FIV neste país.

A interpretação do artigo 4.1 do Pacto São José

Nesta sentença, a Corte, além disso, se deu a tarefa de interpretar pela primeira vez o artigo 4.1 do Pacto San José (também chamada, Convenção Americana sobre Direitos Humanos), o qual é frequentemente citado por corte e juristas internacionais como o mais explicito reconhecimento do direito à vida do nascituro em um tratado internacional. Este artigo estabelece:

Toda pessoa tem direito que respeite sua vida. Este direito estará protegido pela lei e, em geral, a partir do momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.

O trabalho interpretativo da Corte consistiria, em termos gerais, em precisar aquilo que os Estados quiseram obrigar soberanamente ao firmar o Pacto San José em 1969, de sorte que se façam exigíveis aos países os acordos a que se comprometeram. No caso que nos ocupa, a Corte, fazendo uso de suas faculdades, chegou as seguintes conclusões no trabalho interpretativo do mencionado artigo:

Em primeiro lugar afirma “que o embrião não pode ser considerado como pessoa para efeitos do artigo 4.1 da Convenção Americana”.  Em segundo lugar, distingue “concepção” de “fertilização”, sustentando que “a ‘concepção’ no sentido do artigo 4.1 tem lugar desde o momento em que o embrião se implanta no útero”; portanto, a Convenção não é aplicável antes deste evento”. Em terceiro lugar afirma que, de acordo com a expressão “em geral”, a proteção do direito a vida não pode ser absoluta, “sendo gradual e incremental segundo seu desenvolvimento, devido a que não constitui um dever absoluto e incondicional”. Finalmente, conclui afirmando que “o objeto direto de proteção (do artigo 4.1) é fundamentalmente a mulher grávida”.

A interpretação da Corte certamente deixou perplexa mais de uma pessoa, pois o assunto não termina aqui, já que esta suposta faculdade de amplíssima interpretação se junta à pretensão de que este tipo de interpretação deverá ser aplicada a nível interno nos países que firmaram o Pacto de San José, mediante o chamado controle de convencionalidade.

Dificilmente pode-se concluir o exposto de maneira acrítica. É inevitável que o observador atento se pergunte: Qual foi a autêntica vontade dos Estados ao firmar este pacto, em primeiro lugar? Que interpretação vieram dando durante os últimos 40 anos? Qual é a interpretação vigente em cada país?

Observando o Pacto San José in vitro

Um dos critérios jurídicos para a interpretação de um tratado internacional, como o que nos ocupa, consiste em atender a prática ulterior dos Estados. O que chamamos de prática ulterior? A aplicação que fizeram do tratado os países que firmaram o pacto, já que em certo sentido se pode afirmar que dita aplicação nos dá a melhor evidência da interpretação comum das partes.

Uma olhada atenta sobre como os Estados assinantes interpretaram o Pacto San José, colocando in vitro, nos permite observar como se “refratar” o nível interno na ordem jurídica da cada país, dando-nos um indicio certo sobre a interpretação vigente do tratado de direito humanos.

Em um trajeto pela legislação interna dos 25 países que assinaram a Convenção, encontramos logo após assinar o Pacto San José, seis países modificaram suas constituições com o fim de outorgar reconhecimento expresso a personalidade jurídica do nascituro, antes deste tratado de direitos humanos somente duas constituições contemplavam este tipo de reconhecimento constitucional.

Seguindo este itinerário encontramos que, nos últimos anos, três tribunais constitucionais da América Latina interpretaram o artigo 4.1 como protetor da vida embrionária, ao invoca-lo na proibição da distribuição da contracepcion de emergência, em razão do reconhecimento que dito artigo outorga a personalidade jurídica do embrião humano.

A análise da legislação civil na América Latina mostra que no âmbito civil se protege a vida do que está por nascer, incluindo a vida embrionária, já que nenhum código civil faz referência alguma ao tempo da gestação. Quase todos os ordenamentos civis latino-americanos reconhecem direitos ao ser humano por nascer, que se cristalizam e consolidam definitivamente se nasce com vida. Em geral, o nascituro tem capacidade jurídica para herdar, receber doações, ter um patrimônio com todas suas consequências, etc. inclusive, em alguns casos, os códigos de família estabelecem obrigações de manutenção aplicáveis desde a concepção.

Desde o ponto de vista do direito penal, a tipificação do aborto como delito é a consequência lógica do reconhecimento da vida pré-natal. Atendendo a legislação penal vigente encontramos que o delito do aborto esteve desde sempre presente nos 25 Estados membros da Convenção. A este respeito podemos observar alguns aspectos. O primeiro é que logo após assinar o Pacto San José se observam três tendência: a primeira, em mais de dois terços das partes dos países, foi a de manter o estado da legislação restritiva, na República Dominicana, Venezuela, Dominica, Haiti, Suriname; a proibição é de caráter absoluto, ou seja: não contempla como única escusa absoluta. Outro subgrupo de cinco: Peru, Costa Rica, Guatemala, Grenada e Paraguai, contempla como única escusa absolutória o caso de perigo da saúde da mãe, e o resto dos países, Trindade e Tobago, Jamaica, Brasil, Panamá, Bolívia, Equador e Argentina preveem, além disso, a excludente de punibilidade do aborto no caso de violação.

Uma segunda tendência, logo após o Pacto San José, foi derrogar as escusas absolutas, como é o caso do Nicarágua,  El Salvador, Honduras e Chile e a terceira tendência fazia a liberação da legislação em matéria de aborto encontramos em Barbado, Colômbia, e a despenalização durante as primeiras doze semanas no Uruguai e na capital do México.

O anterior nos deixa ver que aproximadamente dois terços das partes dos países que assinaram o Pacto San José o aborto foi proibido quase que completamente e que, com algumas exceções, praticamente nenhum país legalizou em qualquer circunstância.

Respeito a prática legislativa dos Estados membros da Convenção em torno ao fenômeno das chamadas “técnicas de reprodução assistida” após uma atenta caminhada pelas 25 legislações, podemos observar que, a fecha, a diferença do afirmado pela Corte no caso Artavia, há pouca legislação sobre o tema. Somente um país assinante do Pacto San José conta com um corpo normativo em fertilização assistida; no resto dos países, com exceção do Brasil, pode encontrar de forma fragmentada uma escassa legislação secundária sobre os aspectos que são consequências do fenômeno das “técnicas de fertilização assistida”, como por exemplo, o tema da filiação em matéria civil, ou em matéria penal a figura de “inseminação artificial indevida” como uma figura equiparável  ao delito de violação.

Esta evidente dificuldade de legislar em torno das técnicas de reprodução assistida por parte dos Estados signatários da Convenção é em parte reflexo da contradição com sua ordem jurídica, que a maioria deles reconhece o caráter pessoal da vida embrionária.

No âmbito de declarações oficiais internacionais se observa que quase a metade dos países latino-americanos fizeram referência explicita as obrigações internacionais assumidas no Pacto San José no seu artigo 4.1 como um dos fundamentos do reconhecimento da personalidade jurídica do nascituro e desta forma expulsa a inclusão do aborto ou a interrupção da gravidez em documentos de consenso internacional.

Seguindo o âmbito internacional, encontramos que posterior à ratificação do Pacto San José, a grande maioria de Estados da América Latina e o Caribe ratificaram, além disso, a Convenção dos Direitos da Criança, que define em seu proemio a criança como “todo ser humano desde o momento de sua concepção até os 18 anos de idade”, ou seja, abarcando o período pré-natal, e incorporando esta definição legal a nível nacional, como indicam os informes ao Comitê de seguimento da Convenção dos Direitos da Criança.

Como podemos apreciar deste brevíssimo trajeto, se observamos in vitro o Pacto San José, e como se há “refratado” nas legislações dos países, encontramos um aspecto de normas jurídicas, declarações oficiais e instrumentos internacionais que nos ajudam a desentranhar qual foi a vontade dos países em 1969 ao assinar dita convenção e qual é sua vigente interpretação.

Atrás do desenvolvimento legislativo, mostra que os países acordaram uma interpretação não restritiva do artigo 4.1, já que buscavam incluir sob a proteção do dito tratado de direitos humanos, a todos os seres humanos independentemente de seu estado de desenvolvimento, além disso, do aspecto de proteção a maioria dos países interpretaram como obrigações positivas do Estado garantir os direitos  pré-natais a vida, a integridade pessoal e o desenvolvimento de todo as crianças por nascer.

A Corte Interamericana in vitro

Consideramos sumamente grave o desconhecimento que a Corte fez da prática posterior dos Estados em seu trabalho interpretativo do artigo 4.1. A nosso modo de ver, a Corte se afastou da vontade original das partes, assim como da interpretação vigente dos países assinantes, sobre qual fundaram um número importante de normas de suas ordens jurídicas internas.

Essa infeliz sentença nos deixou ver, além disso, suas inconsistências jurídicas já abordadas por outros acadêmicos em diversas sedes, a falta de procedimento institucionalizado da Corte para tomar decisões, o qual põe em risco sua legitimação como o órgão interpretativo de um dos tratados de direitos humanos mais importante do continente americano.

Este modo pouco adequado de interpretar o Pacto San José, assim como outras recentes decisões da Corte, está lastimando seriamente ao sistema interamericano de direitos humanos, pois, exclui de forma arbitraria um grupo de pessoas que originalmente se consideravam sob sua proteção. O exposto está ocasionando uma grande preocupação e forte descontentamento em uma parte importante da população latino-americana. Decisões como a sentença Artavia-Murillo (Fertilização in vitro) vs. Costa Rica (2012) estão pondo em risco o futuro e viabilidade do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.

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FONTE: 
http://cisav.mx
TRADUÇÃO: SAMARA RUANA

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