ANAJURE se manifesta sobre suposto caso de intolerância religiosa em Recife (PE)

Nota
 
O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE – no uso das suas atribuições estatutárias e regimentais, vem, através do presente expediente, expor aos órgãos e entidades públicas e à sociedade brasileira, sua posição referente a instauração de Procedimento Administrativo Disciplinar na Comissão de Ética da Câmara dos Vereadores de Recife – PE e procedimento de Inquérito Civil instaurado pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE), em face da vereadora do município de Recife – PE Missionária Michele Collins, para investigar se a mesma violou a ética e o decoro parlamentar e cometeu de violação à liberdade religiosa de comunidades religiosas de matriz africana, respectivamente, através de postagem em rede social.
I – DOS FATOS
No dia 5 de fevereiro de 2018 a vereadora Missionária Michelle Collins publicou, em sua página oficial no Facebook, uma mensagem em que diz que “estaria clamando e quebrando toda maldição de Iemanjá lançada contra nossa terra em nome de Jesus”. Acompanhado de uma foto que mostra várias pessoas em uma praia, a postagem da parlamentar, já deletada de suas redes sociais, se referia ao evento “Noite de Intercessão no Recife, orando por Pernambuco e pelo Brasil” realizado na orla de Boa Viagem, na Zona Sul do Recife.[1]
De plano, alguns terreiros e outras entidades ligadas aos cultos de matriz africana emitiram notas de repúdio, tal como a página da Comunidade de Terreiro Ilé Àse Órisànlá Tàlábi, acusando a vereadora de ter publicado um texto de propagação ao racismo, ódio e desrespeito às tradições de matriz africana. Além disso, atos e manifestações foram realizados na Câmara Municipal contra Michele Collins.[2]
Um dia depois da postagem, no entanto, a assessoria da parlamentar divulgou uma nota de desculpas, cujo teor, in verbis, dizia:

Diante do exposto sobre uma postagem realizada em suas redes sociais, a vereadora missionária Michele Collins esclarece que em nenhum momento teve a intenção de ofender ou propagar qualquer mensagem de ódio religioso. Todos sabem que a missionária é veementemente contra qualquer intolerância religiosa, inclusive já deletou a postagem de suas redes sociais, diante dessa falha na elaboração do texto. A vereadora missionária Michele Collins pede desculpas aos que se ofenderam.

O Ministério Público de Pernambuco (MPPE), por sua vez, resolveu instaurar um inquérito civil para investigar se a vereadora do Recife Michele Collins (PP) cometeu o crime de violação à liberdade religiosa. A decisão, publicada no Diário Oficial do dia 10/02/2018, foi motivada pela repercussão entre diversas comunidades de terreiro de Pernambuco.
De acordo com o texto do MPPE, por meio do processo de portaria nº 001/2018, assinado pelo 7º promotor de Justiça de Defesa da Cidadania, Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, Westei Conde, Michele Collins deve ser notificada a comparecer à promotoria para prestar esclarecimentos.
Além da vereadora, representantes da Igreja Família 61, da Comunidade de Terreiro Axé Àse Òrisànlá Tàlábí, de outras comunidades de terreiro, como também outros órgãos relacionados, como a Secretaria Estadual de justiça e Direitos Humanos e a Comissão de Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Pernambuco, foram notificados a comparecer ao Ministério Público do Estado. Neste sentido, Michele Collins prestou depoimento no Ministério Público de Pernambuco (MPPE), durante mais de duas horas no dia 02 de março, ao passo que os representantes de terreiros do estado serão ouvidos no MPPE no dia 21 de março.[3]
Ademais, foi instaurado Procedimento Administrativo Disciplinar, na Comissão de Ética e Decoro da Câmara dos Vereadores de Recife, ocasionada por representação protocolada pelas comunidades de Terreiro envolvidas pedindo, entre outras coisas, uma pena de Censura à parlamentar. Com efeito, o vereador Romero Albuquerque, componente da Comissão de Ética e Decoro da Câmara dos Vereadores de Recife, foi escolhido, por sorteio, para ser o relator do processo.
No dia 02 de março de 2018 ele pediu o arquivamento da denúncia, alegando que a vereadora agiu fora do exercício da atividade parlamentar. A Comissão aprovou por unanimidade o parecer do relator e o caso foi arquivado[4].
II – DA POSIÇÃO INSTITUCIONAL DA ANAJURE
II.I – Liberdade Religiosa
A proteção da liberdade religiosa constitui-se um dos pilares do Estado Democrático de Direito, erigido pelas Constituições modernas como um Direito Humano Fundamental. Não consiste em um único direito, mas uma multiplicidade de direitos, tratada por alguns estudiosos como um complexo de direitos que abarca direitos individuais e coletivos. Na verdade, o Estado constitucional moderno tem como um de seus elementos construtivos a liberdade religiosa, sem a qual resta-se configurado um Estado autoritário, por restringir a liberdade mais íntima do ser humano, ou como dizem os norte-americanos, the first right. A Liberdade Religiosa é direito fundamental consagrado na Constituição Brasileira em seu artigo 5º, incisos VI, VII, VIII.
Em um ambiente laico e plural como a República Federativa do Brasil, a diversidade é um dado social facilmente verificável, mas o pluralismo, qual seja, o bom relacionamento e a convivência pacífica com e entre o diferente é uma conquista jus social paulatina, que já está contemplada na Constituição Federal brasileira. Portanto, à despeito de uma religião ser minoritária ou majoritária, seus adeptos e praticantes gozam do mesmo status, podendo exercê-la livremente, sem quaisquer entraves. Neste sentido, a forma adotada pela nossa Carta Magna no que tange à liberdade religiosa, é na direção de que todas as religiões devam coexistir de modo pacífico. O que não implica dizer que elas devam ter dogmas, costumes e crenças iguais, visto que as crenças geralmente são discordantes e, por vezes, diametralmente opostas.
II.II – Intolerância Religiosa
Nas palavras do grande constitucionalista Uadi Lammêgo Bulos,

Intolerância religiosa é a conduta de ódio, por meio da qual pessoas físicas ou jurídicas agem, violentamente, contra a crença alheia, praticando atos criminosos, brutais, terroristas, fanáticos e imorais, que podem levar ao extermínio da própria vida. Intolerante é aquele que demonstra uma falta de habilidade em reconhecer opinião ou ponto de vista diferente do seu.[5]

Neste sentido, a intolerância ultrapassa as barreiras da discordância, do discurso, do debate de ideia e crenças, comum na vida social, terminando em briga, racismo, desentendimento, crime e morte. Nesse contexto, também pode surgir o terrorismo, que é a intolerância em sua potência maximizada.
Destarte, compreendemos que a intolerância religiosa está deveras aquém do caso em tela, posto que a vereadora, através de uma postagem em sua rede social, apenas expressou suas convicções religiosas em um contexto de culto religioso, como qualquer cidadão de qualquer religião tem o direito de assim o fazer.
II.III – Liberdade de Expressão Religiosa
A liberdade de expressão constitui um pilar fundamental do Estado Democrático de Direito. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 19º, protege esse direito nos seguintes termos:

Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.

Na Constituição Federal, a liberdade de expressão encontra-se consagrada no artigo 5º, especialmente nos IV e IX. Além disso, o artigo 220 da Constituição proclama:

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Considerando que a liberdade religiosa desemboca num complexo de outros direitos, sem os quais tornar-se-ia um direito impraticável e cujo qual a liberdade de expressão – além da liberdade de associação, de consciência e de culto – está inserida, temos a noção de liberdade de expressão religiosa. Assim, a liberdade de expressão religiosa consiste na verbalização do que está impresso na consciência, vale dizer, “aquilo que eu acredito é o que eu falo”. Nesta toada, um adepto ou praticante de uma (ou nenhuma) religião tem o total direito de criticar e manifestar opiniões contrárias em relação às outras religiões e formas de crença.
O STF (Supremo Tribunal Federal), inclusive, tem se posicionado neste sentido:

Pregar um discurso de que as religiões são desiguais e de que uma é inferior à outra não configura, por si, o elemento típico do art. 20 da Lei nº 7.716/89. Para haver o crime, seria indispensável que tivesse ficado demonstrado o especial fim de supressão ou redução da dignidade do diferente, elemento que confere sentido à discriminação que atua como verbo núcleo do tipo.

STF. 1a Turma. RHC 134682/BA, Rei. Min. Edson Fachin, julgado em 29/11/2016 (lnfo 849).
Deste modo, o exercício da liberdade de expressão religiosa, ainda que feito por meio de comparações entre as religiões (dizendo que uma é melhor que a outra) não configura, por si só, crime de racismo e de intolerância religiosa. Só haverá racismo se o discurso dessa religião supostamente superior for de opressão, restrição de direitos ou violação da dignidade humana das pessoas integrantes dos demais grupos.
Portanto, diante do caso em tela, compreendemos que houve mero exercício da liberdade de expressão religiosa por parte da vereadora, e que, apesar disso, ao perceber que alguns grupos se sentiram incomodados, logo apagou a sua postagem.
III– CONCLUSÃO E ENCAMINHAMENTOS
Ante ao exposto, a ANAJURE entende que (i) a postagem da vereadora Missionária Michele Collins é protegida pelo direito constitucionalmente assegurado à liberdade de expressão e à liberdade religiosa (artigo 5º, incisos IV, VI e IX, da CF/88); (ii) o conteúdo da sua mensagem não veicula discurso de ódio ou promove discriminação de qualquer tipo, mas apenas expressa as convicções religiosas da parlamentar sobre outras religiões; (iii) a cidadã Michele, inobstante seja uma vereadora, também é, como qualquer outra pessoa física, sujeita dos direitos fundamentais que por ela possam ser exercidos, como é o caso da liberdade religiosa e de expressão; (iv) a decisão no âmbito do Procedimento Administrativo Disciplinar na Comissão de Ética e Decoro da Câmara dos Vereadores de Recife foi absolutamente adequada, posto que respeitou a liberdade religiosa da mesma enquanto cidadã, o mandato dela enquanto parlamentar e os 15.357 cidadãos recifenses que a elegeram no pleito eleitoral de 2016; (v) o inquérito civil instaurado pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE) para investigar se a vereadora cometeu o crime de violação à liberdade religiosa é de causar preocupação, pois embora seja um procedimento de natureza inquisitiva, informal que possibilita uma prévia investigação de fatos denunciados com o fim de se diminuir a propositura de Ações Civis Públicas sem fundamento (Lei Federal n. 7.347/85), gerou um grande constrangimento a mesma, bem como a todos os cidadãos que exercem sua liberdade de expressão religiosa.
Assim, a ANAJURE, por meio desta nota pública, manifesta sua preocupação com as acusações de intolerância religiosa em face da vereadora Missionária Michele Collins, bem como ao inquérito civil instaurado pelo MPPE, a fim de verificar se a mesma violou a liberdade religiosa de outros grupos, pois, uma eventual acusação formal além de violar a liberdade de expressão e de crença, representaria lamentável interferência abusiva da esfera estatal na manifestação de pensamento e liberdade de expressão religiosa.
Em razão disto, a ANAJURE irá (i) oficiar a Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos e a Comissão de Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Pernambuco, com o conteúdo da presente Nota Pública; (ii) oficiar a Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania, Promoção e Defesa dos Direitos Humanos do Ministério Público de Pernambuco com o conteúdo da presente Nota Pública a fim de que possa servir de ferramenta de revisão do seu entendimento ou de elucidação no inquérito civil instaurado; e (iii) oficiar a Comissão de Ética e Decoro da Câmara dos Vereadores de Recife, com este documento, parabenizando-a pela lúcida decisão de arquivar um processo disciplinar absolutamente descabido e por ter respeitado as liberdades civis fundamentais da vereadora Missionária Michele Collins.
 

Brasília, 19 de março de 2018.

 
Dr. Daniel Meira
Coordenador Estadual da ANAJRUE em Pernambuco
 
[1] https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/postagem-de-vereadora-evangelica-do-recife-sobre-iemanja-gera-reacao-de-terreiros.ghtml
[2] https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/representantes-de-terreiros-fazem-ato-contra-vereadora-evangelica-do-recife-que-citou-maldicao-de-iemanja.ghtml
[3] https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/vereadora-do-recife-que-criticou-culto-a-iemanja-presta-depoimento-no-mppe.ghtml
[4] http://www.recife.pe.leg.br/noticias/comissao-de-etica-divulga-nota-sobre-michele-collins
[5] https://www.anajure.org.br/intolerancia-religiosa-no-ordenamento-brasileiro/

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