ANAJURE emite Nota Pública sobre Decisão do TJ/SP que determinou a retirada de inscrições bíblicas de monumento em Praia Grande/SP

O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE – no uso das suas atribuições estatutárias e regimentais, vem, através do presente expediente, expor aos órgãos e entidades públicas competentes e à sociedade brasileira, sua posição contrária à decisão proferida nos autos de apelação nº 1004126-47.2016.8.26.0477, que determinou a retirada de inscrições bíblicas de monumento situado em uma praça de Praia Grande/SP.

I – DOS FATOS

A Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos – ATEA ajuizou ação civil pública[1] em face do Município de Praia Grande/SP, alegando que a construção de um espaço público cujo nome dado foi “Praça Bíblica” e que a inserção de inscrições bíblicas em um monumento do referido local ofendem a laicidade estatal.
Na primeira instância, o juízo da Vara da Fazenda Pública de Praia Grande/SP extinguiu o processo sem resolução do mérito, por ilegitimidade ativa. A autora recorreu da decisão e obteve julgamento parcialmente procedente. No acórdão, a 10ª Câmara de Direito Público do TJ/SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) afastou a ilegitimidade ativa, e, no mérito, entendeu que as citações bíblicas contidas na “Praça da Bíblia” ofendem a laicidade estatal.
Consequentemente, o TJ/SP entendeu que não seria necessário destruir o obelisco da praça, mas determinou que o Município de Praia Grande/SP retirasse “as inscrições religiosas inseridas no monumento erguido na Praça da Bíblia, transformando o local em espaço laico” e não condenou a prefeitura municipal ao pagamento de indenização por dano moral coletivo, conforme requerido no recurso interposto.
 
II – DA POSIÇÃO INSTITUCIONAL DA ANAJURE
 
II.I – Laicidade do Estado

A secularização (processo de afastamento da sociedade ao controle da igreja) ocorrida principalmente nos países ocidentais, embora verificada em diferentes níveis, solidificou a ideia de laicidade do Estado. Embora ainda se discuta as diferenças entre essas terminologias, resta entender que o Estado laico é aquele em que não há uma religião ou entidade religiosa oficial (aconfessionalidade estatal), e onde se garante às organizações religiosas uma não interferência do Estado em sua criação e funcionamento. Em resumo, a laicidade ocorre quando há separação entre igreja e Estado.
Acerca da separação entre Estado e Religião, o eminente Professor Doutor Jorge Miranda[2], constitucionalista português, leciona no seguinte sentido:

“(…) não determina necessariamente desconhecimento da realidade social e cultural religiosa, nem relega as confissões religiosas para a esfera privada.
(….) Laicidade significa não assunção de tarefas religiosas pelo Estado e neutralidade, sem impedir o reconhecimento do papel da religião e dos diversos cultos. Laicismo significa desconfiança ou repúdio da religião como expressão comunitária e, porque imbuído de pressupostos filosóficos ou ideológicos (…), acaba por pôr em causa o próprio princípio da laicidade.
(…) Oposição absoluta à religião constitui fenômeno recente, ligado aos totalitarismos modernos: os marxistas leninistas e o nacional-socialista. Como o Estado pretende ser total e conforma ou visa conformar toda a sociedade, destituída de autonomia, pela sua ideologia, a religião deixa ter espaço e ou se submete ou tem de se reduzir à clandestinidade.”

Outra questão relevante acerca da laicidade é que um Estado com tais características não se encontra isolado de qualquer possível influência religiosa. As considerações de Aloisio Cristovam dos Santos Junior[3] sobre o assunto são elucidativas:

Um outro aspecto que deve ser posto em relevo é o de o Estado laico não é aquele absolutamente imune a influências religiosas. Os exemplos de Estados laicos que adotaram políticas públicas que direta ou indiretamente resultaram de movimentos capitaneados por líderes religiosos são inúmeros. Por vezes, a motivação religiosa constitui fator determinante para a luta encetada por certos segmentos sociais visando à adoção de políticas governamentais que melhoram a vida de toda a sociedade. No particular, o caso de Martin Luther King Junior é emblemático. Ninguém em sã consciência pode negar que muitas das políticas governamentais americanas foram fortemente influenciadas pelo Movimento dos Direitos Civis liderado pelo pastor batista com motivações fortemente religiosas.

O princípio da laicidade está expresso em nossa Constituição no artigo 19, in verbis:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

A afirmação que o Brasil é um Estado laico, contudo, tem sido insistentemente repetida pelas autoridades estatais quando querem impor uma política pública que contrarie interesses religiosos, e é produzida, na maioria das vezes, como mero argumento retórico divorciado de uma compreensão do modelo de laicidade encampado pelo Estado brasileiro.
Em alguns países, a tendência de confinamento da religiosidade ao âmbito da vida privada tem se confundido com a própria laicidade. No Brasil, contudo, a visão constitucional de Estado Laico não se coaduna com esse formato de privatização da fé. Aloisio Cristovam[4], ao analisar a construção da laicidade no Brasil, defende que o nosso ordenamento “adotou uma neutralidade benevolente, tendente a obsequiar o fenômeno religioso e não a expurgá-lo por completo do espaço público”. Assim, em nosso país, consagra-se na Constituição a liberdade de crença; a separação entre Estado e Igreja com a possibilidade de colaboração de interesse público; a hipótese de escusa de consciência por motivos de crença, sendo necessária a aceitação de prestação alternativa; a imunidade dos templos religiosos, dentre outras disposições nessa linha. Ainda sobre o assunto, o autor explica que é possível se debater a justeza do modelo de laicidade adotado no Brasil, não sendo possível, contudo, que o intérprete venha a preterir o disposto em nosso ordenamento para adotar soluções adotadas em outros países por mera preferência pessoal. Nas palavras do autor:

A laicidade do Estado brasileiro, proclamada desde a instauração da República, na forma como é adotada pela atual Constituição Federal, longe de significar uma diminuição do espaço conferido ao fenômeno religioso, presta-se até a ampliá-lo e, sendo assim, a interpretação dos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que tratam da questão da liberdade religiosa não pode ignorar esse viés hermenêutico. É verdade que, no plano filosófico, abre-se a possibilidade de discutir a justeza do modelo adotado e se ele representa o que há de mais avançado ou retrógrado na vivência democrática. É mera questão de opinião. O que não se pode conceber é que o intérprete do direito, em nome de posições filosóficas pessoais ou pelo mero desejo de imitar soluções doutrinárias e jurisprudenciais adotadas em países cujo modelo de laicidade seja diferente, despreze o modelo que representa uma opção clara do constituinte brasileiro[5].

Outrossim, ao invocar-se o Estado laico no debate, deve-se ter de forma bem nítida a distinção entre laicidade e laicismo. O laicismo significa “desconfiança ou repúdio da religião como expressão comunitária”[6], e uma de suas características principais é justamente a relegação da expressão religiosa à esfera privada, banindo-a do espaço público e comunitário. Isto, em si, viola o Estado laico, uma vez que o laicismo, “porque imbuído de pressupostos filosóficos ou ideológicos (…), acaba por pôr em causa o próprio princípio da laicidade”[7].
A laicidade, por sua vez, impõe ao Estado não só uma obrigação negativa, mas também positiva. No aspecto negativo, significa que este não pode promover ou subvencionar uma religião em detrimento das outras, adotar determinada confissão como oficial, ou impedir a manifestação de qualquer visão religiosa. No viés positivo, por sua vez, a laicidade impõe ao Estado o dever de garantir que a todas as confissões religiosas seja permitida a expressão, seja esta privada ou pública.
Aplicando esses conceitos ao caso em tela, temos que, ao permitir a construção de monumentos com menções à determinada confissão religiosa, o Estado de forma alguma viola o seu caráter laico; pelo contrário, garante-o. Seria descumprida a laicidade se o Estado proibisse, arbitrariamente, que símbolos de determinada religião adotada pela população fossem expostos em monumentos, praças ou qualquer outro espaço público, ou determinasse que apenas uma confissão religiosa pudesse gozar desse direito.
Importa destacar, nesta senda, que não cabe, num Estado laico, que seja obrigatória a expressão pública de todas as confissões existentes numa comunidade. Isso porque o dever positivo do Estado decorrente da laicidade não é o de garantir que todas confissões religiosas se expressem – já que a efetiva expressão dependerá da volição e atuação de cada uma – mas sim, de garantir que seja permitida a sua expressão. Com efeito, a posição do Estado brasileiro deve ser de neutralidade no sentido de viabilizar a pública expressão religiosa dos diversos credos.
A associação autora alegou ofensa ao art. 19, I, da Constituição Federal, que consagra a laicidade em nosso ordenamento. Vale salientar, no entanto, que não houve, por parte do Município de Praia Grande/SP, o estabelecimento, subvenção, o embaraço de cultos religiosos ou a fixação de relações de dependência ou aliança com instituições religiosas e seus representantes.
A chamada “Praça da Bíblia” não tem como finalidade funcionar como espaço para cultos religiosos, não havendo que se falar, portanto, em “evidente destinação religiosa” da praça, como dispõe o Acórdão. Não se trata de uma igreja, nem de patrocínio a qualquer religião. Na verdade, a praça é um local aberto ao público, inclusive para os que se alinham a uma religião que não compartilhe dos preceitos cristãos. Embora a praça comporte a realização de manifestações religiosas, de qualquer religião, frise-se, como qualquer outra praça pública, essa não é a sua finalidade elementar. Logo, não se pode dizer que a construção do local sirva para privilegiar um determinado credo ou como forma de patrocínio religioso, visto que não há o estabelecimento de um culto ou de uma confissão religiosa a partir de uma iniciativa estatal. Da mesma forma, vale pontuar que a edificação em comento não impõe a ninguém a obrigação de se filiar a qualquer crença religiosa, não havendo, também nesse aspecto, prejuízo à laicidade estatal nem um proselitismo financiado pelo Estado.
Os fundamentos aventados na presente ação, de que a única forma de efetivar o caráter laico do Estado seria a supressão de símbolos religiosos no espaço público, mostra-se em desacordo com a intenção do legislador constituinte, que muito bem expressou a vontade do povo brasileiro – realidade essa que se mantém – qual seja, a de possibilitar a expressão religiosa na esfera pública.

II.II – Liberdade Religiosa e Cultura

Para muitos indivíduos, a religião é o aspecto mais importante da vida. É fundamental para a sua identidade, o fundamento da sua compreensão da realidade e determinante dos seus pontos de vista sobre a dignidade humana.
A adoção de uma determinada religião pelos cidadãos, inevitavelmente, provoca reflexos na cultura, algo bastante perceptível no contexto brasileiro. A influência pode ser notada a partir da observação de alguns elementos característicos, como os feriados existentes em nosso país[8]; as reuniões comemorativas que se estabelecem nas datas de cunho religioso; o forte apelo das festas populares com raízes inegavelmente religiosas[9]; a linguagem e as expressões carregadas de sentimento religioso; e, ainda, a própria rotina do brasileiro, que, comumente, escolhe um dia da semana para manifestar sua espiritualidade em comunidade.
Tais expressões culturais possuem nítidas raízes na religiosidade. Garanti-las representa um esforço para a manutenção da boa convivência entre os aderentes de diversos credos e para a preservação da identidade de um povo. Há, portanto, uma relação entre a salvaguarda da liberdade religiosa e a proteção da cultura de uma comunidade.
Cultura, segundo documento produzido pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, é:

(…) o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças[10] (p. 54).

Do conceito acima exposto, depreendemos que a crença religiosa não raramente é o elemento produtor e irradiador das manifestações culturais de uma sociedade.
A existência de uma tradição de tolerância e mesmo aceitação do uso de determinados símbolos religiosos ou mesmo de datas e feriados religiosos vinculados a uma orientação religiosa amplamente majoritária, não significa, per si, uma intervenção desproporcional no exercício de liberdade negativa e positiva de religião por parte das demais correntes[11].
Tratando-se de expressão cultural dotada de origens religiosas, não há que se falar em promoção de uma crença em particular. Esse foi, inclusive, o raciocínio adotado pela Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) no caso Lautsi vs. Itália[12]. A situação apreciada na ocasião se referia à petição de uma mãe que entendeu que seus filhos seriam prejudicados ao estudarem em uma escola onde, em cada sala de aula, havia um crucifixo fixado na parede. A compreensão da requerente era a de que a presença do símbolo poderia representar uma influência religiosa indesejada.
A conclusão da Corte Europeia foi no sentido de que a mera presença dos crucifixos não implica na promoção de uma educação cristã, não representando, portanto, uma doutrinação. Além disso, apurou-se existir, na Itália, um ambiente propício à coexistência das religiões, algo exemplificado pela possibilidade de alunos utilizarem lenços islâmicos ou outros símbolos de conotação religiosa. Ainda na referida decisão, firmou-se o entendimento de que o lugar ocupado por uma religião na história e na tradição de um país deve ser considerado nas análises referentes a possíveis ofensas à liberdade religiosa.
Como visto, a Corte Europeia destaca (i) a inexistência de ofensas à liberdade religiosa na manutenção de símbolos religiosas no espaço público e (ii) a necessidade de preservação dos aspectos culturais e históricos representados pelos símbolos religiosos.
Postura semelhante é a jurisprudência de órgãos do Poder Judiciário brasileiro[13]:

  1. Em 2007, no julgamento de quatro Pedidos de Providência (1.344, 1.345, 1.346 e 1.362), a maioria dos membros do Conselho Nacional de Justiça entendeu que o uso de símbolos religiosos em órgãos da Justiça não fere o princípio de laicidade do Estado. Sagrou-se vencedora a tese de que o uso de tais símbolos constitui um traço cultural da sociedade brasileira e “em nada agridem a liberdade da sociedade, ao contrário, só a afirmam”[14].
  2. Em 2009, na Ação Civil Pública nº 2009.61.00.017604-0, a Justiça Federal em São Paulo rejeitou pedido do Ministério Público Federal (MPF) para a retirada dos símbolos dos prédios públicos, entendendo que a presença destes não ofende os princípios constitucionais da laicidade do estado nem de liberdade religiosa[15].
  3. Em 2016, no julgamento do Procedimento de Controle Administrativo (PCA) nº 0001418-80.2012.2.00.0000, o Conselho Nacional de Justiça reiterou o seu posicionamento, em desfavor Conselho Superior da Magistratura do Estado do Rio Grande do Sul, ressaltando que a presença dos Crucifixos nas salas do Poder Judiciário não privilegia nenhuma corrente religiosa e não afronta à laicidade, determinando seja decretada a nulidade e a desconstituição do ato administrativo emanado daquele órgão.

Quanto ao presente caso concreto, a construção de uma praça cujo título faz referência a uma religião específica e que contenha um monumento com inscrições retiradas do livro sagrado de uma determinada crença não representa favoritismo em detrimento de outras manifestações religiosas, antes, significa um meio de promoção de elementos culturais, mesmo que com raízes religiosas, valiosos para uma determinada população. Tal procedimento, mais do que uma possibilidade, é um dever que recai sobre os entes federativos, conforme dispõe a Constituição Federal:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
V – proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação; (grifos nossos)

Na esteira da compreensão da Corte Europeia anteriormente citada, frisamos que a promoção de diversas manifestações culturais enraizadas em variadas expressões religiosas afasta a ideia de predileção de um credo específico. Na própria cidade de Praia Grande/SP, local de toda a celeuma, há a “Praça da Paz”, que conta com esculturas de personalidades que lutaram pelo bem da humanidade, entre elas, de Jesus Cristo, Maria Mãe de Jesus, Papa João Paulo II, Madre Tereza de Calcutá e Mahatma Gandhi.
Ademais, tanto é verdade que os fundamentos culturais de uma comunidade podem e devem ser preservados e materializados que, sendo uma cidade litorânea, lá possui estátua de Netuno[16], em ode à mitologia greco-romana, sendo este um dos pontos turísticos mais visitados de Praia Grande/SP, constando no Plano Diretor.
De semelhante modo, também possui estátuas de Iemanjá, em razão da festa anual celebrada[17]. Este é o evento religioso mais tradicional em Praia Grande/SP, sendo a maior do Estado de São Paulo, remontando aos anos de 1950 e atraindo mais de 30 mil pessoas anualmente à cidade; envolve adeptos dos Cultos de Matrizes Africanas, Espíritas, Espiritualistas e Umbandistas, assim como demais fiéis e simpatizantes. Há informações referentes a investimentos públicos voltados à preservação do monumento[18] e a justificativa para o aporte de recursos se fundamenta no potencial turístico do ponto e o no aspecto cultural[19].
Por fim, inobstante a Maçonaria não seja considerara uma religião pelo STF,[20] tem aspectos ideológicos e filosóficos que a diferenciam e se destacam no imaginário moral da comunidade. Neste sentido, reconhecendo a participação deste grupo na cultura local, foi erguido um obelisco e inaugurada a Praça Maçon[21], por meio de autorização legal[22], em homenagem ao trabalho social desenvolvido pelos integrantes das sete lojas maçônicas existentes no município de Praia Grande/SP.
Seguindo a linha de raciocínio exposta, o próprio TJ/SP julgou caso no qual se determinou a permanência de placa instalada pelo Município de Sorocaba, em lugar público, com a expressão “Sorocaba é do Senhor Jesus”, fundamentando o posicionamento na ideia de que se trata de manifestação da cultura popular e não de religião. O voto do desembargador Ricardo Dip traz considerações pertinentes sobre o tema:

Trata-se, não de manifestação religiosa, mas, isto sim, de uma expressão cultural. Impedi-la implicaria, a meu ver – com a devida vênia discriminação contra as raízes civilizacionais brasileiras e contra a liberdade expressiva do pensamento popular. À margem de afirmação epistêmica alguma sobre a verdade da fé cristã, calha, sem dúvida, que tem de admitir-se o fato de o povo brasileiro ser, em sua origem histórica, civitas cristiana. A só menção, portanto, do nome de Jesus Cristo reportado à cidade de Sorocaba é uma referência histórico-cultural, que, por si só, não aflige o âmbito do poder político, nem ainda o da liberdade de consciência e de crença[23] (grifo nosso).

Há que se destacar, ainda, a sugestão dada pelo relator, no sentido de transformar a “Praça da Bíblia” em uma “Praça da Paz”, sob o argumento de que universalizar o monumento com tal nome contribuiria com a congregação de ideologias e crenças distintas. A atribuição de um título supostamente neutro para a praça, longe de expressar imparcialidade, representa a tentativa de fazer prevalecer uma perspectiva religiosa humanista, na qual, sob o pretexto de valorizar a laicidade, exclui-se a religiosidade tradicional da esfera pública, confinando-a nas quatro paredes da vida privada.
Além disso, o acórdão aduz que “o registro histórico de uma época em que Estado e religião se fundiam não justifica que construções expressamente vinculadas à religião continuem sendo feitas”. Quanto a isso, aproveitamos para ressaltar que, embora não deva existir, de fato, confusão entre Estado e instituições religiosas, não se pode negar a religiosidade inerente ao brasileiro, constituindo isso, inclusive, elemento identitário do nosso povo, razão pela qual se justifica a construção de monumentos que valorizem aspectos culturais da nossa nação, incluindo elementos de ordem religiosa.
Dilema semelhante já foi enfrentado pelo Brasil, no início da década de 1920, quando o então Consultor-Geral da República opinou desfavoravelmente à construção de um monumento ao Cristo Redentor, no alto do Corcovado, pois significaria resistência ao Estado laico. Segue transcrição parcial[24]:

Considerado o Cristo como símbolo religioso não pode o Poder Público deferir o pedido para sua colocação num logradouro, que é bem público e, como tal, de uso comum do povo e inalienável (Código Civil, art. 66, nº I, e 67). O Estado é leigo. A Constituição lhe veda manter com qualquer igreja ou culto “relações de dependência ou aliança ou conceder-lhe subvenção oficial”. Bem certo o deferimento do pedido para permitir a ereção de uma estátua do Cristo num logradouro público não entra literalmente, em qualquer dos dispositivos constitucionais; mas para mim é incontestável que esse deferimento fere o seu espírito porque sem dúvida importa na concessão de um favor do Estado em benefício de uma Igreja, a concessão de uma parte de bem público para ereção de um dos seus símbolos mais significativos.

Nesta oportunidade, apesar da opinião do Consultor-Geral, o monumento foi erguido como representativo de uma população majoritariamente cristã e hoje é símbolo da cidade do Rio de Janeiro, sem que ninguém ouse, sequer, cogitar demoli-lo, pois é um local de congregação de diversas pessoas, ainda que não religiosas ou que tenham outra convicção de fé.
Vê-se, portanto, que a postura dos governantes de Praia Grande/SP, no presente caso, foi semelhante ao exemplo histórico supracitado: reconhecer a importância de uma manifestação cultural-religiosa e materializá-la por meio de um monumento, sem estipular restrições de uso do bem público; antes, pelo contrário, convocando a todos os que por lá passem, para que se apoderem da “Praça da Bíblia” com um espaço laico e agregador, tal qual foi feito nas demais praças referidas acima.

III – CONCLUSÃO E ENCAMINHAMENTOS

Ex positis, a ANAJURE entende que (i) a construção do monumento com inscrições religiosas em apreço não constitui patrocínio à religião; (ii) a “Praça da Bíblia” traz em seu bojo manifestação cultural que reflete aspecto identitário dos moradores de Praia Grande/SP, razão pela qual deve ser preservada; (iii) a edificação de monumento que faz referência a uma religião específica não fere a laicidade estatal, considerando a existência de construções que aludem a outras expressões culturais enraizadas em religiosidades distintas; (iv) o posicionamento adotado no acórdão prolatado deve ser revisto para que a estrutura e o título da “Praça da Bíblia” sejam mantidos.
Assim, a ANAJURE, por meio desta nota pública, manifesta seu posicionamento contrário ao supracitado acórdão proferido pelo TJ/SP, por considerá-lo manifestamente ilegal e inconstitucional, pois restringe indevidamente o direito humano fundamental à liberdade religiosa e interpreta equivocadamente a vedação constitucional referente ao patrocínio religioso e laicidade estatal.
Em razão disto, a ANAJURE irá oficiar ao Desembargador Relator e ao Tribunal de Justiça de São Paulo a presente Nota Pública, a fim de que possa servir de ferramenta de revisão do seu entendimento, caracterizado por ser uma anomalia jurídica que deve ser descontinuada.

Brasília, 29 de agosto de 2018

Sem título

_________________________________________________________________________________
[1] Processo nº 1004126-47.2016.8.26.0477.
[2] MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV, direitos fundamentais. 3 ed. rev. actual. Coimbra Editora. 2000, p. 409
[3] SANTOS JUNIOR, Aloisio Cristovam dos. A laicidade estatal no direito constitucional brasileiro. Disponível em: < https://sylviomiceli.wordpress.com/2008/05/04/a-laicidade-estatal-no-direito-constitucional-brasileiro/>. Acesso em: 28 ago. 2018
[4] SANTOS JUNIOR, Aloisio Cristovam dos. A laicidade estatal no direito constitucional brasileiro. Disponível em: < https://sylviomiceli.wordpress.com/2008/05/04/a-laicidade-estatal-no-direito-constitucional-brasileiro/>. Acesso em: 28 ago. 2018
[5] SANTOS JUNIOR, Aloisio Cristovam dos. A laicidade estatal no direito constitucional brasileiro. Disponível em: < https://sylviomiceli.wordpress.com/2008/05/04/a-laicidade-estatal-no-direito-constitucional-brasileiro/>. Acesso em: 28 ago. 2018
[6] MIRANDA, Jorge. Estado, liberdade religiosa e laicidade. In: O Estado laico e a liberdade religiosa. São Paulo: LTr, 2011, p. 111.
[7] Ibid.
[8] São exemplos disso o dia de Corpus Christi, a Sexta-Feira da Paixão, o Dia de Nossa Senhora Aparecida, o Natal, dentre outros.
[9] Podemos citar como exemplos disso as festas juninas, que movimentam diversos municípios em termos econômicos, turísticos e culturais, e as festas dos padroeiros de determinadas localidades.
[10] BRASIL. Diversidade religiosa e direitos humanos: reconhecer as diferenças, superar a intolerância, promover a diversidade. Disponível em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/dilma-vana-rousseff/publicacoes/orgao-essenciais/secretaria-de-direitos-humanos/diversidade-religiosa-e-direitos-humanos-reconhecer-as-diferencas-superar-a-intolerancia-promover-a-diversidade/@@download/file/libro_diversiade.pdf>. Acesso em: 28 ago. 2018
[11] SARLET, Ingo. Liberdade religiosa e dever de neutralidade estatal na Constituição Federal de 1988. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-jul-10/direitos-fundamentais-liberdade-religiosa-dever-neutralidade-estatal-constituicao-federal-1988. Acesso em: 28 ago. 2018.
[12] ECHR, European Court of Human Rights. Case of Lautsi and other v. Italy. Disponível em: http://hudoc.echr.coe.int/app/conversion/pdf/?library=ECHR&id=001-104040&filename=001-104040.pdf. Acesso em: 28 ago. 2018.
[13] Atualmente, o Supremo Tribunal Federal está julgando as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 5258 e 5256, nas quais a ANAJURE já requereu o seu ingresso como Amicus Curiae. As ações foram ajuizadas pelo ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, para questionar a constitucionalidade de leis promulgadas pelas Assembleias Legislativas do Amazonas e do Mato Grosso do Sul, respectivamente, em razão das mesmas determinarem a inclusão de, pelo menos, um exemplar da Bíblia no acervo das bibliotecas e escolas públicas estaduais.
[14] https://www.conjur.com.br/2007-mai-29/uso_simbolo_nao_fere_carater_laico_estado_cnj
[15] https://www.conjur.com.br/2009-ago-21/laicidade-nao-expressa-eliminacao-simbolos-religiosos
[16] Na mitologia romana, Netuno era o deus dos mares e oceanos, que cavalgava as ondas do mar em cima de cavalos brancos. Os romanos acreditavam que Netuno era o responsável pela formação das principais formas de relevo, principalmente as situadas na região litorânea.
Era considerado também o senhor das ninfas dos oceanos, mares, rios, fontes e lagos.
[17] http://www.praiagrande.sp.gov.br/administracao/Projeto_descricao.asp?cdSecretaria=78&cdProjeto=9
[18] O site do Município noticia obra de recuperação do monumento e da área próxima.
PRAIA GRANDE/SP. Cultura e turismo. Disponível em: <http://www.praiagrande.sp.gov.br/pgnoticias/noticias/noticia_01.asp?cod=5922>. Acesso em: 28 ago. 2018.
[19] PRAIA GRANDE/SP. Cultura e turismo. Disponível em: <http://www.praiagrande.sp.gov.br/administracao/Projeto_descricao.asp?cdSecretaria=78&cdProjeto=9>. Acesso em: 28 ago. 2018.
[20] Recurso Extraordinário n° 562.351/RS.
[21] http://www.praiagrande.sp.gov.br/pgnoticias/noticias/noticia_01.asp?cod=26055&cd_categoria=
[22] Decreto Municipal nº 2749/98 e Decreto Municipal nº 3143/00.
[23] TJSP. Placa, em lugar público, com a expressão “Sorocaba é do Senhor Jesus”. Manifestação da cultura popular e não de religião. Provimento do recurso. Processo 3008630-80.2013.8.26.0602. Disponível em: <https://tj-sp.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/159007912/apelacao-apl-30086308020138260602-sp-3008630-8020138260602/inteiro-teor-159007924?ref=juris-tabs>. Acesso em: 28 ago. 2018.
[24] https://www.conjur.com.br/2015-mai-28/passado-limpo-cristo-redentor-fere-espirito-constituicao-parecer-1921

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